terça-feira, maio 20, 2014

indielisboa'14


OBSERVATÓRIO

Abus de Faiblesse (2013), de Catherine Breillat.


C'était moi, c'était pas moi. Maud é e não é Catherine Breillat. Isabelle Huppert, no papel de Maud, é e não é Catherine Breillat. Em Abus de Faiblesse (2013) Maud, realizadora, acorda com metade do corpo paralisado. Os primeiros momentos: uma absoluta incompreensão do seu corpo, imobilizado; um esforço agonizante para se movimentar. Ali o branco é nada menos do que aflitivo. Durante o processo de recuperação daquela parte do seu corpo que parecia estar perdida, subjugada à solidão e limitação que a doença acarreta e sem abandonar o projecto que começara antes do AVC, depara-se com Vilko, o rapper Kool Shen, um burlão agora num programa de televisão a exibir os seus feitos, leia-se, roubos. Tinha de o ter. Para o seu filme, quiçá em acto de compreensão, de salvamento, mas, ainda que não, certamente que com uma fascinada necessidade de posse. Possivelmente, uma identificação na atracção pelo perigo. Maud sabia-o e, ainda assim, procurava. C'était moi, c'était pas moi. A experiência da realizadora, não a personagem, mas Breillat ela mesma, não se distancia em nada do que aqui se descreveu, não com o ficcional Vilko, mas com o já condenado burlão de Hollywood, Christophe Racancourt. Por quem Breillat se deixou fascinar e foi ela mesma burlada, perdendo fortuna, casa, dignidade, enterrando-se, em jeito fúnebre, numa cama. Ela mesma terá assinado todos os cheques, a ver o que se sucederia e, ainda assim, fazendo-o. Tal como Maud, no filme. Em 2007 a realizadora terá publicado a história no livro Abus de Faiblesse, crime pelo qual Racancourt terá sido novamente condenado. E agora o filme, naquilo que parece ser uma derradeira tentativa de conciliação e distanciamento daquilo que lhe aconteceu, um ponto final, como se na perspectiva de alguém já exterior à história, só explicável naquela frase final de Maud, perante a família que não consegue perceber como se perde para as mãos de um já condenado burlão tamanha fortuna, e após a tragédia, C'était moi, C'était pas moi. 


Al Doilea Joc (The Second Game, 2014), de Corneliu Porumboiu.

















Corneliu Porumboiu, realizador da nova vaga romena e vencedor da Câmera de Ouro em Cannes com 12:08: East of Bucharest, aponta agora a câmara, num único plano fixo, para um ecrã de televisão. A emissão terá a duração de 90 minutos, o tempo exacto de um jogo de futebol. No caso, não um jogo qualquer, mas um jogo entre Steaua e Dinamo, em 1988, arbitrado por Adrian Porumboiu, pai do realizador. Como banda sonora, eles mesmos, pai e filho, Adrian e Corneliu Porumboiu que comentam o jogo, a própria arbitragem e, ainda, a Roménia no ano que seria o último antes da queda de Ceausescu. Em termos plásticos, o resultado será o de uma imagem captada por três câmaras de televisão, em 1988, de um campo de futebol revestido de branco, pela neve que cai incessantemente, onde os jogadores vão deixando as suas marcas de corrida e estratégias de ataque. Num jogo que não deveria ter acontecido - assim o queria Ceausescu, pelo Steaua, e assim o queria a polícia política, pelo Dinamo -, mas que aconteceu graças à persistência de Adrian, apesar das ameaças de morte e da neve. Naquilo que poderia ser somente um jogo de futebol, mas que aqui se transforma numa declaração sobre uma Roménia que não mais existe, impressa a branco, em tom absolutamente desdramatizado, como se quer. Quem quer ver um filme sobre um jogo velho? Pergunta o pai ao filho, avisando-o, à partida, de que o filme não terá, certamente, qualquer audiência. E, enquanto isso, os jogadores esforçam-se em campo para alcançar a baliza do adversário por entre a neve. Excepto quando se adivinham problemas entre eles, já que a violência não era permitida na televisão, pelo menos aí, quando a terceira câmara gira subitamente, focando-se na bancada, onde uma multidão de guarda-chuvas assistia ao jogo, debaixo de neve, naquele que será talvez o mais sublime plano do filme, plano este que não o chega bem a ser. 



CINEMA EMERGENTE

Costa da Morte  (Coast of Death, 2013), de Lois Patiño.

















A Costa da Morte assim o é porque será a costa onde vão dar os corpos desaparecidos que o mar traz - Como quando apareceram aqui os corpos desaparecidos na queda da ponte em Portugal, relembra uma mulher de quem percebemos a silhueta a banhar-se na imensidão do mar, agora límpido e calmo, mas usualmente turbulento e impenetrável. Situada na região da Galiza, seria, a Costa da Morte, o fim do mundo durante o Império Romano. E, como não poderia deixar de acompanhar aquilo que é o imaginário do fim do mundo, uma terra repleta de lendas e mitos, que vivem, ainda hoje, com quem ali vive também. A morte nunca se afasta do imaginário daqueles habitantes, que convivem, numa estreita e íntima relação, com um oceano trágico. Patiño, que recebeu com A Costa da Morte o prémio de melhor realizador emergente em Locarno 13', constrói o documentário a partir de uma visão etnográfica da região e seus habitantes, acostumados, porque enraizados nela, a uma paisagem drástica de naufrágios e infortúnios. Os personagens: pescadores, marisqueiros na apanha do percebes, agricultores.
A abordagem de Patiño torna-se sublime, porém, a partir do momento em que assume uma lente paisagística deste fim do mundo. Nunca o fim do mundo pareceu tão apelativo, tão belo. Em longos e estáticos planos da paisagem, do mar e da terra e do misticismo que os rodeiam, o uso do ecrã é absurdamente capaz e total. No plano geral, onde se costuma ver somente horizonte, vê-se aqui movimento, como quando em primeiro plano surge o mar, em segundo um camião, que trabalha e divide, e em terceiro a costa, com os banhistas em jeito de pontos. E é delicioso, este trabalho plástico, onde a imagem vale tudo e o que se ouve são longínquos relatos dessincronizados de pessoas que vão aparecendo, aqui e ali, sempre em ponto minúsculo, como na verdade o são, perante a imensidão natural que os (nos) rodeia. A lenda mistura-se com a história, e ambas se misturam com a paisagem e o nevoeiro, em gesto místico, naquilo que parece por momentos deixar de ser um documentário para passar a viver no campo da poesia.



INDIEMUSIC

Alan Vega: Just a Million Dreams (2013), de Marie Losier.

















Alan Vega, artista visual, escultor e, fundamentalmente, músico precursor do rock electrónico minimalista, ficará na história da música associado ao duo punk (a ele acresce o também delirante Martin Rev) mais emblemático da cena dos anos 70, os Suicide. Neste documentário de Losier, cineasta e programadora de cinema, mas, mais do que isso, amiga do músico e compositor dos sintetizadores, vemos um Alan que é o Alan que vive no imaginário de todos e quaisquer fãs de Suicide, um alucínio, mas que é também um Alan dedicado à sua família, Liz, mulher e colaboradora e Dante, o filho. Alan envelheceu, mas fê-lo da forma como desenhou toda a sua vida, na excentricidade. 

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