terça-feira, novembro 09, 2010

Crítica "The Last Picture Show"

CINECLUBE FDUP 4ª SESSÃO 9 NOVEMBRO 2010:
“The Last Picture Show” (1971), de Peter Bogdanovich.

Crítica por: Francisco Noronha

Sam: Being crazy about a woman (…) is always the right thing to do. Being an old decrepit bag of bones, that's what's ridiculous. Gettin' old.

Nomeado para oito Óscares e vencedor de dois (melhor actor secundário masculino para Ben Johnson e melhor actriz secundária feminina para Cloris Leachman), chega-nos um filme de um realizador que ainda há pouco tempo foi motivo de uma retrospectiva profunda na Cinemateca.



O facto de The Last Picture Show começar e acabar da mesmíssima forma é tudo menos coincidência. A abrir e a fechar o filme, a câmara lenta e panorâmica de Peter Bogdanovich filma uma pequena localidade isolada e árida do Texas onde o único ruído que nos chega (e que nos acompanhará por todo o tempo) vem do assobio desolado de um vento incessante e teimoso. Este facto é tudo menos coincindência, dizia, porque ele nos quer dizer que entre o início e o fim da fita nada mudou – nada muda nunca - , simbolizando assim de forma profundamente poética a imutabilidade das coisas e a natureza cíclica da vida humana.



The Last Picture Show é um filme “total”, no sentido da completude com que aborda os problemas dos homens na sua transversalidade, isto é, desde os seus primeiros passos (juventude) até ao seu último suspiro (velhice). Este tenso dualismo, inarredável à vida humana (basta para isso pensarmos no mito do elixir da eterna juventude), é, em bom rigor, o dualismo omnipresente em The Last Picture Show.
Servindo-se de personagens-tipo sabiamente trabalhadas, o filme tem como pano de fundo o universal confronto entre velhos e novos, ou, por outras palavras, entre aqueles para quem o que a vida tem de bom já foi gozado e as desilusões da vida pouco auguram de positivo para o tempo que resta; e os que, do lado oposto, se começam a atirar de cabeça em busca de novas experiências e sensações (o coming of age, em bom inglês). E neste último particular, o filme é muitíssimo audacioso para época ao abordar (e filmar) de frente a Sexualidade, quebrando, desfazendo, trucidando tabus e grilhetas.
Interrogando-se profundamente sobre a moral cristã e suas idiossincrasias (o mesmo é dizer, e suas transgressões pelos comuns mortais), o filme acaba por constituir uma síntese do que foi a onda de contestação lançada pela contracultura norte-americana (mais tarde difundida por todo o mundo) nos anos 50 e 60. Não o faz abertamente, explicitamente, filmando hippies ou anarquistas, mas de uma forma muito mais bela e subtil – ou não fosse esse o poder simbólico e imagético que a arte tem de sugerir sem impor. Fá-lo, portanto, quando capta os pormenores que no interior do Texas, mas também no resto do mundo (a ideia de que esta pequena cidade pode ser o espelho de uma mudança à escala global – o universal como “o local sem muros”, na expressão feliz de Miguel Torga), começam a abanar o sistema de códigos e valores ocidentais conservadores da segunda metade do século XX.
E neste ponto é exemplar o destaque dado à descoberta da Sexualidade pelos jovens, expresso, nomeadamente, na mistificação da virgindade; na apologia da (falsa) mulher púdica, sublimemente representada por Jacy (Cybill Shepherd parece que é iluminada por fonte divina em cada close-up sobre o seu rosto, ao que ajuda a sua beleza extraordinária); na crítica do casamento monogâmico cristão (“80% dos casamentos são infelizes”, diz o velho Sam) e na constatação do adultério e da prostituição; na (suposta) virilidade do macho, etc..



Mas The Last Picture Show não seria um filme “total” se se ficasse pela Sexualidade ou pela provocação a todo um sistema de valores prestes a implodir. Onde fica então o Amor (querem tema mais “total” e universal do que este?) de velhos e novos no meio de tudo isto?
É aqui que os mais velhos, os outrora “sábios” – os mesmos que nas nossas sociedades modernas perderam essa qualidade para ganhar a de estorvos ou empecilhos - , a quem Bogdanovich mostra o seu respeito e admiração, têm lições para nos dar. É com Sam the Lion (interpretação soberba de Ben Johnson) que nos sentamos à beira-rio para aprender o que é o Amor; e é com Ruth (outra interpretação fabulosa de Cloris Leachman), uma mulher infeliz com o seu casamento, e com Lois Farrow (mãe de Jacy), uma quarentona entediada e promíscua, que aprendemos o que ele não é.



Mas “o tempo está é para os jovens”, como diz o adágio, e por isso é em torno do adolescente Sonny que o filme girará, mostrando-nos os seus amigos e os locais que frequenta. Sonny é verdadeiramente a peça-chave de The Last Picture Show, uma vez que ele representa na perfeição a inércia e o desalento daquela terra e suas gentes. É perceptível como Sonny vive num dilema constante entre o partir na busca de novos horizontes, e o ficar no local onde sempre viveu - e nisto reside o segundo dualismo, a segunda tensão omnipresente do filme.
E é uma peça-chave porque, à semelhança de quase todas as personagens de relevo neste filme (Sam, Duane, Jacy, Lois, Ruth), ele não está bem naquela cidade: cada um à sua maneira, todos estão entediados e vivem um ram-ram diário desapaixonado. Para todos eles, aquela cidade é demasiada pequena para os seus sonhos e espíritos. Com a excepção de Duane (cuja destino de partida é como que uma última ou única alternativa – e a alternativa que Bogdanovich apresenta não é inocente), todos estão, por obra e graça desse vento teimoso, condenados a ficar – mesmo Sam e Jacy, quando iniciam uma infantil fuga, são parados uns poucos quilómetros depois….
A última sessão (fazendo jus ao título do filme) do cinema da cidade a que Duane e Sonny vão (e vão para se despedir duplamente: um do outro e os dois do cinema) é, uma vez mais, uma representação poética e comovente do que separa Duane e Sonny: o partir do primeiro e o ficar do segundo.
Diz-nos (elucida-nos) o cowboy que é hora de partir: Take them to Missouri!. E é neste momento, muito bonito por sinal, que Duane olha timidamente de lado para Sonny, como que lhe perguntando o porquê de se separarem, o porquê de… ficar.



“Tudo o vento levou” é um lugar-comum que é aqui de aplicação obrigatória: o vento que Bogdanovich repetidamente filma é o vento que vai levando aos poucos todos as pessoas queridas de Sonny. E é nessa solidão e melancolia extremas que, um pouco à semelhança de Viaggio in Italia (1951), de Roberto Rosselini, se dá o milagre: velhos e novos, ambos sozinhos, ambos desesperançados, entregam-se mutuamente numa comunhão urgente e vital. Há quem lhe chame… fado.

2 comentários:

Guilherme Silva disse...

gostei bem

Ana disse...

Foi dos melhores filmes que vi no cineclube :)